A vaca não dá leite

As redes sociais nos inundam de informações, e a maior parte delas se vai com a mesma rapidez com que chega. Porém o que nos toca fica. E foi isso que aconteceu com o vídeo de um trecho de uma palestra do filósofo e escritor Mario Sergio Cortella, por quem tenho grande admiração, que vi no Instagram. Cortella contou uma história linda sobre os filhos: quando completassem 12 anos, teria algo muito importante para lhes dizer, uma lição para levarem pro resto da vida. No dia do aniversario de 12 anos, seu filho acordou cedo e ansioso para finalmente ouvir o ensinamento de seu pai. E Cortella disse: “a vaca não dá leite”, completando que é necessário alguém (ou uma máquina ou o próprio bezerro) apertar sua teta para retirar o leite. Ou seja, precisamos sair da inércia para alcançarmos nossos objetivos. Precisamos ser ativos, pois o leite não sai sozinho da teta da vaca.

Esta frase me fez refletir sobre muitos passos que dei na minha vida, mas também me fez pensar além…

Será que a vaca quer doar o leite dela ou somos egoístas ao ponto de roubá-lo, submetendo as vacas a injeções de hormônios para produzirem mais leite, antibióticos para tratá-las de mastite e a dor insuportável que é ter uma máquina apertando sua teta ferida? Este é o cenário do cotidiano de muitas vacas no sistema de produção industrial e convencional. Bom, fica a pergunta….

Enquanto isso, faço um paralelo com as mulheres, as fêmeas da nossa sociedade. Somos vistas como doadoras do nosso tempo e trabalho (não remunerado) em nome do amor para criar os filhos, cuidar do marido e arrumar a casa. É importante frisar que para o capitalismo, sistema sócio-econômico em que vivemos, a força de trabalho é o seu maior bem. Ele é produzido e reproduzido majoritariamente e exclusivamente, pelas mulheres. Somos nós que cuidamos, alimentamos, mandamos para a escola e damos banho nas nossas crianças, nossas ou da patroa.

Amamentar é outro ato lindo, gostoso, nutritivo e fundamental para o bom desenvolvimento dos bebês, porém muitas vezes inatingível para muitas mulheres. É um ato impossibilitado pela licença-maternidade de 4 meses. Apesar de a OMS (Organização Mundial de Saúde) recomendar a amamentação exclusiva por pelos menos 6 meses, isso é impossibilitado pela falta de estrutura ou reconhecimento da importância desse ato pela maior parte das empresas ou até pelo machismo estrutural que assola nossa sociedade e recria homens que impedem suas parceiras de amamentar. O tempo, o trabalho e o leite são roubados de nós, mulheres.

Como disse meu amigo e psicólogo Alexandre Amaral numa recente entrevista que fiz com ele pro Canal da Bela: “a mulher que decide amamentar, está virando as costas pro capitalismo e por isso esse ato não é valorizado na nossa sociedade”.

Dentro dá lógica capitalista, existe uma grande apropriação da generosidade feminina. Por outro lado, existe um pseudoromantismo na escolha do verbo dar para explicar o que faz a mulher que consente no sexo, que pare um filho ou amamenta sua cria. A mulher dá!!! Replicando o jornalista Ivan Martins: “dar indica um ato autônomo de vontade. Quem dá não é roubado, quem dá não é forçado, quem dá escolhe dar, oferece ou atende a um pedido. Entrega algo que é dela. Entrega-se. Quem dá, afinal, não vende nem troca”. Concluindo, a mulher dá (de graça) a produção e reprodução da humanidade, e a vaca o leitinho morno que combina com o café e os outros que lucram com isso.

Que tal repensar a apropriação dessa generosidade?

 

Fonte: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/bela-gil/2020/07/29/a-vaca-nao-da-leite.htm 

 

 

 

Olha o milho… é transgênico

Curau, canjica, pamonha, mugunzá, milho assado, pipoca e bolo de milho são algumas comidas típicas das festas juninas que sempre deixaram o mês de junho mais apetitoso. Que cereal versátil e delicioso!

As festas de São João celebradas no Brasil são herança portuguesa com toque indígena, pois na Europa, os portugueses comemoravam a colheita do trigo a partir do mês de junho. Como não havia trigo em terras brasileiras, os portugueses adotaram o milho cultivado pela população indígena. Segundo a tradição nordestina do plantio de milho, a semente é plantada no dia de São José, 19 de março, para ser colhido no dia de São João, no final de junho.

Atualmente, o Brasil celebra o milho não só nas festas juninas, mas também na Bolsa de Mercadorias e Futuros com as safras anuais para exportação (em 2019, o Brasil se tornou o maior exportador de milho do mundo, superando inclusive os Estados Unidos, com embarques de 44,9 milhões de toneladas). Esta realidade seria tolerável se 90% do milho cultivado não fosse transgênico, se 20% dos agrotóxicos utilizados no nosso país não estivessem no milho, se seu cultivo em monoculturas transgênicas não empobrecesse o solo, não desmatasse o nosso Cerrado e não estimulasse a fome mundo afora.

O debate sobre transgênicos é amplo e apesar de não haver estudos científicos que garantam que os transgênicos não façam mal à saúde humana, não vou debater sua segurança nutricional. Existe outra problemática com os transgênicos que me incomoda mais nos dias atuais: o patenteamento!

A semente do milho geneticamente modificada recebe um gene de outro organismo e essa alteração no seu DNA permite que mostre uma característica que não tinha antes. No caso do milho, a semente transgênica cria resistência a herbicidas e a insetos, supostamente facilitando o trabalho do agricultor. Na natureza, sempre ocorreram (e ainda ocorrem) alterações ou mutações naturais. No caso da transgenia, essa mutação é artificial.

As sementes naturais, ancestrais, criolas são guardadas e passadas de geração em geração para garantir o plantio e o sustento de muitas famílias, além de preservar a diversidade no campo. Uma vez que a semente se torna propriedade privada obrigando os agricultores a pagarem royalties (direito à exploração comercial) às empresas donas das sementes, produzir alimentos se torna muito mais difícil. Esta dependência dos agricultores para com as multinacionais donas de sementes intensifica a disparidade social entre os produtores rurais e afeta o agricultor financeira e psicologicamente, tornando muitas vezes sua profissão inviável.

Herdamos também de Portugal, do tempo da colonização, a produção de monoculturas para exportação como a cana-açúcar e o café. Esse sistema produtivo se replica e se intensifica com subsídio do governo para fortalecer a economia nacional como é o caso da soja, do milho, do café e do açúcar por exemplo. As monoculturas em larga escala, apesar de produzirem toneladas de commodities, não alimentam quem realmente precisa. Um país que tem como prato nacional o arroz e o feijão precisa importar feijão da Argentina para alimentar sua população, enquanto exporta soja para alimentar os porcos na China. Então é sempre bom lembrar que queremos comida, não commodities que enriquecem o bolso de poucos deixando tantos brasileiros com fome. Portanto, motivos para celebrar a safras do milho são poucos ou quase nenhum, mas continuemos celebrando São João e os guardiões das sementes de milho criolas.

Fonte: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/bela-gil/2020/07/15/olha-o-milho-e-transgenico.htm